Energia eólica: a frustração de quem sonhava viver dos ventos no RN

Imagem: Mariana Greif/Repórter Brasil

Analfabeto, José Bernardo Sobrinho assinou um contrato de 37 anos, renováveis por mais 22, com uma empresa de energia eólica que fincou uma torre em seu quintal para captar ventos. Tudo aconteceu sem que José entendesse que o acordo o impediria de plantar feijão na sua roça ou mesmo construir mais casas para os filhos que iriam crescer em Parazinho, no semiárido de Rio Grande do Norte.

Assim como José, centenas de famílias do estado arrendaram suas terras para empresas eólicas acreditando que poderiam passar a viver de vento. Contudo, hoje elas se queixam de receber menos que o esperado, ou até ganhar abaixo do valor assinado em contrato.

Em alguns casos, os proprietários reclama de ser impedidos de usar suas terras para o roçado, principal ganha-pão das comunidades.

A gente plantou feijão carioca no pé daquela torre mais fininha, e eles pegaram o trator e passaram por cima.
Severina Rodrigues da Silva


Viúva de José, Severina vive com seis barulhentas torres instaladas perto de sua casa -- a mais próxima está a 220 metros e dificulta a conversa com a reportagem.
Imagem: Mariana Greif/Repórter Brasil
Por meio de contratos de arrendamento, empresas do setor eólico controlam hoje pelo menos 262 mil hectares no Rio Grande do Norte, o que representa 5% da área do estado — ou quase duas vezes o tamanho da cidade de São Paulo.
Metade dessa área está nas mãos de 27 empresas brasileiras, e a outra metade, com 19 companhias estrangeiras.

Os dados fazem parte de um levantamento inédito da Repórter Brasil, que cruzou informações da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), com dados do Sigef (Sistema de Gestão Fundiária), do Sistema Nacional de Certificação de Imóveis Rurais e da Receita Federal, para descobrir quem são as empresas e os proprietários envolvidos na geração de energia eólica no Rio Grande do Norte.

O estado é o maior produtor nacional dessa energia, uma das principais apostas para a transição energética necessária para combater a crise climática.

Como é o controle da energia eólica no RN
Imagem: Repórter Brasil
Ao todo, os parques eólicos em operação, em construção ou já previstos têm contratos assinados com pelo menos 1.915 imóveis rurais em 51 municípios do estado. Apenas duas empresas concentram um terço desses negócios: a portuguesa EDPR (316 contratos) e a brasileira Casa dos Ventos (307).

São empresas transnacionais com grande poder econômico tratando com famílias que têm dificuldade de entender as condições contratuais e que muitas vezes nem sabem ler.
Claudionor Vital, advogado que assessora comunidades que alegam ter sido prejudicadas As empresas negam as críticas. Elas afirmam que os contratos seguem a legislação vigente e que investem no desenvolvimento das comunidades. A associação que representa o setor declarou que está elaborando um manual para orientar a redação dos contratos (leia mais abaixo).
Onde estão os parques eólicos no RN
Imagem: Repórter Brasil
Energia eólica no vácuo
Diferentemente da água, que é considerada um bem do Estado por legislação específica, os ventos estão em um limbo regulatório, diz a pesquisadora Mariana Traldi, professora do Instituto Federal de São Paulo

Em sua tese de doutorado "A privatização dos ventos para a produção de energia eólica no semiárido brasileiro", defendida na Unicamp, ela avaliou que o Código Civil brasileiro abre uma brecha para que o potencial energético dos ventos seja visto como pertencente à terra, uma vez que a norma classifica o espaço aéreo como parte do imóvel, sem definir o limite em altura.

Dessa forma, as empresas eólicas usam instrumentos do direito agrário para fazer negócios: o Estatuto da Terra (1965) e o decreto 59.566 (1966). Porém, tais normas foram criadas para discutir o uso da terra, numa época em que sequer eram cogitados os parques eólicos.

Essa falta de regulação abre margem para abusos, opina Traldi. "Apesar de seguirem como donos das terras, os proprietários perdem controle sobre os terrenos", diz.

Encontrei contratos com duração de 49 anos com renovação automática por mais 22, sem a necessidade de anuência do proprietário.
Mariana Traldi, professora do Instituto Federal de São Paulo

O marido de Severina arrendou toda a terra da família ao parque eólico Ventos de São Miguel, com a promessa de que poderiam seguir trabalhando na roça e criando animais. Porém, a Elera, atual gestora, impediu a agricultora de instalar cercas em uma área onde cria animais, sob o argumento de que iria atrapalhar o trânsito de carros da companhia.

"Eles falaram que iam colocar a cerca, mas até hoje não fizeram", diz SeverinaA Elera afirma que os proprietários recebem pelo arrendamento da terra, mas que podem utilizar o imóvel "para atividades de agricultura e pecuária, desde que respeitados os procedimentos de segurança associados à operação dos ativos de geração de energia". Confira o posicionamento.
Seguranças vigiam 24 horas os parques eólicos no Rio Grande do Norte
Imagem: Mariana Greif/Repórter Brasil

Pagamentos
Uma pesquisa do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), que analisou 50 contratos de arrendamento entre eólicas e comunidades do Nordeste, concluiu também que os acordos apresentam "distorções" entre as fases de projeto e operação.

"Os projetos são vendidos como se as pessoas não precisassem nem ter outra renda para viver. Mas quando começa a gerar [energia] e o dinheiro começa a entrar na conta, entende-se que não era nada aquilo que foi prometido", afirma Cássio Carvalho, assessor do Inesc.

Laércio Ribeiro, líder do Projeto de Assentamento Chico Mendes, e mais 63 famílias assinaram um acordo em 2011 para instalação dos parques eólicos Aventura IV e V, em TourosDurante os dez anos das fases de de estudos e construção, as famílias ganhavam R$ 3 por hectare arrendado - e ainda eram impedidas de usar a área 
Quando a energia passou a ser gerada em 2021, as famílias começaram a receber 1,5% da receita obtida pela geração dos ventos, de acordo com o contrato. Por mês, Ribeiro recebia cerca de R$ 150 por hectare. Porém, ele diz que o valor caiu para R$ 32 por hectare este ano, sem explicações, após o parque ser transferido para a Copel.

Com isso, sua renda mensal, que chegava a R$ 3.000 por seus 20 hectares cedidos, caiu para R$ 642.

Questionada, a Copel não respondeu sobre o suposto corte nos repasses. A companhia afirmou que seus empreendimentos "estão em conformidade com o regramento legal vigente" e contribuem para o desenvolvimento local. 
Imagem: Mariana Greif/Repórter Brasil 
A presidente da Associação Brasileira de Energia Eólica (Abeeólica), Elbia Gannoum, afirma já ter recebido "relatos de ONGs" com "reclamações pontuais" a respeito das empresas. Porém, diz que não tem como agir nesses casos, pois "não tem poder de fiscalização".

Ela diz que a associação está produzindo um guia de boas práticas para orientar as empresas a realizarem os contratos. "É uma sugestão. Quem tiver problema contratual, tem que ir à Justiça."  Falecido em 2014, José Bernardo Sobrinho deixou para a esposa e os seis filhos sem que eles tenham a opção de interromper o acordo.

A família ainda tem uma dívida com a empresa, que desconta todos os meses metade dos R$ 1.300 a que a família tem direito.

Quando foi instalado o parque, ofereceram R$ 14 mil para que pudessem sair da casa de taipas para uma de alvenaria. Eles já pagaram R$ 72 mil e ainda faltam 27 anos de pagamentos. A filha Jucimara da Silva se arrepende de ter arrendado as terras.

Eu dizia pro meu pai não assinar o contrato. O que adiantou? Porque R$ 650 não é nada.
Jucimara da Silva 
Severina divide a renda das eólicas entre todos. "Cada um tem um pouquinho. Pelo menos dá pro almoço".

Leia a versão completa da reportagem na Repórter Brasil
 Empresas eólicas controlam 5% da área do Rio Grande do Norte
Imagem: Mariana Greif/Repórter Brasil.

Fonte: Notícias aeolica

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